Herança e legado: dois instrumentos sucessórios
Para a instrução adequada de um eventual leigo a perder tempo lendo este artigo, devo apresentar-lhe dois conceitos muitos simples: herança e legado.
HERANÇA / LEGADO


O texto diz que ninguém deve se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Isto está escrito no artigo 3º, do Decreto-Lei 4.657/1942, em vigor no país. Porém, por outro lado, ninguém é obrigado a saber do absurdo. Conhecer todas as leis de um país do porte do Brasil é absurdo.
Claro, a interpretação razoável e adequada para o caso é de que uma lei publicada, cabe ao cidadão buscar conhecê-la, visto que a própria publicação já a torna conhecida (em tese), pois dado a publicidade, o jurista deverá aplicá-la.
Não que todo cidadão do país a conheça, objetivamente, pois é impossível, mas que, uma vez publicada, presume-se conhecida e apta a surtir efeito no caso concreto. Mas, de fato, dizer que ninguém possui o direito de não cumpri-la porque a conhece, simplesmente pelo fato de ter sido publicada em diário oficial, isso é uma das mais absurdas posturas legislativas existentes.
O fato é que conceitos sobre institutos jurídicos não são de conhecimento de todos (se nem mesmo as leis o são) e, claro, pelo volume que se expõem, impossível o seria, ficando destinadas, no dia a dia, aos juristas que delas se utilizam para os procedimentos específicos do mundo jurídico.
No que tange o direito sucessório, objeto de nosso presente estudo, o desconhecimento da lei, em especial do que diz respeito a inventário e a legado, obviamente que se aplica a afirmação acima: impossível que todos o conheçam, mesmo quando a lei diz que é presumido seu conhecimento.
Dessa forma, advindo o falecimento de um ente querido, tendo este patrimônio mínimo inventariável, necessário que o herdeiro (ou interessado), dele se aproprie mediante normas impostas pelo Estado, que, geralmente, não são de conhecimento deste mesmo herdeiro, mas de seu advogado, que deverá ser contratado para o manuseio da norma e do caso.
Dito isto, não é comum ouvirmos conceitos jurídicos dia a dia da boca do leigo, e nem isso poderia acontecer com frequência, afinal, nas banalidades diárias são envoltos assuntos mais agradáveis, risonhos e que tragam conforto e prazer, em especial se um velho estiver presente. Concordará comigo, Sócrates, Platão e seu amigo Céfalo[1].
Tratar de normas jurídicas em um churrasco de família onde todos desconhecem normas jurídicas em termos integrais, seria um completo desperdício de tempo e prazer.
Porém, para a instrução adequada de um eventual leigo a perder tempo lendo este artigo, devo apresentar-lhe dois conceitos muitos simples que, na boca de um falastrão familiar, em dia de domingo, após alguns goles de cerveja e pedaços de carne, correria palavras como herança, inventário, partilha, bens herdados e outros de maior simplicidade e conhecimento vulgar.
Somente para este leigo, que dedicado a consumir tempo, memória e energia, exponho a singela conceituação de herança e legado. Ele, conhecendo tais conceitos, dará com maior propriedade, nas rodas de conversa familiar, tais explicações, elucidando mentes e ganhando credibilidade daquela tia que tende a lhe doar aquele Corcel 72 que foi tão bem cuidado pelo seu de cujus.
Veremos que herança e legado parecem sinônimos no cotidiano, mas juridicamente são coisas distintas, e essa diferença muda para quem recebe, como recebe, quando recebe e o que acontece se houver dívidas.
CONCEITO DE HERANÇA
Dito isto, continuo afirmando que a herança é algo abrangente, e é termo muito mais conhecido do que “legado”. É sempre falado em muitos lugares e possui até ditado: “herança maldita”.
A herança são os bens deixados pelo(a) querido(a), mas não só bens materiais. É o conjunto total de bens, direitos e obrigações deixados pela pessoa falecida. Enquanto o inventário não termina, a herança funciona como um “bolo inteiro” ainda não fatiado: o Direito trata esse acervo como unitário e indivisível até a partilha, e chamamos de “herança”.
Isso importa por um motivo prático: antes da partilha, ninguém “manda” sozinho em um bem específico, porque ainda não existe quinhão individualizado. Existe um acervo e esse acervo é administrado pelo inventariante que, inclusive, pode ser destituído se não for digno de tal encargo, ou seja, se administrar mal será punido.
Por “bens”, tem-se tudo aquilo que envolve matéria e objeto quantificável, também bem imaterial, incluindo aquele fruto futuro. Mas, também, junto aos bens, há as obrigações, as dívidas deixadas pelo de cujus, cujo pagamento deve ser feito às custas do próprio patrimônio deixado.
CONCEITO DE LEGADO
Legado é diferente, é quando o testador aponta um bem certo, determinado ou determinável, específico, para alguém no testamento, como, por exemplo:
a) “Deixo a vitrola da década de 70 para meu sobrinho e junto com ela a coleção de Roberto Carlos e Bartô Galeno.
b) “Deixo meu apartamento em Miami Beach, para minha sobrinha.”
c) “Deixo meu Corcel 72 para meu afilhado.”
d) “Deixo R$ 50.000,00 para minha irmã fazer uma plástica.”
Logo, quem recebe herança é herdeiro e quem recebe legado, ou seja, os exemplos que citei acima, é legatário. Nisto reside a diferença: o herdeiro abrange coisas a serem mensuradas e não especificadas pontualmente, mas o legatário já sabe que tal bem, posto em testamento, livre de dívidas (exceto sobre ele próprio) será seu quando do falecimento.
NO INVENTÁRIO, A ORDEM DO JOGO É: CONTAS PRIMEIRO, DIVISÃO DEPOIS
Aqui está o ponto que mais causa confusão: o inventário não começa distribuindo bens; começa organizando a vida patrimonial que ficou. A lógica é simples: levantar bens, apurar obrigações, pagar o que for devido e só então dividir.
A própria sistemática do procedimento de partilha reforça essa prioridade, indicando o atendimento das dívidas antes das etapas distributivas.
E no plano material, a regra é que a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; e, depois de feita a partilha, os herdeiros respondem cada qual na proporção do que recebeu, diferente do legatário, que terá o bem livre de dívidas, exceto se o contrário for disposto no testamento. Lembrando que as dívidas sobre o legado são do legatário e não da herança ou dos herdeiros.
Herdeiro não vira “devedor infinito”. A lei coloca um freio: o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança, ou seja, somente a herança pagará as contas deixadas pelo falecido e o limite é a própria herança.
Tradução para linguagem de família: em regra, paga-se dívida com o patrimônio deixado, não com o patrimônio particular do herdeiro (salvo situações específicas e exceções que devem ser analisadas no caso concreto). Por enquanto, fiquemos neste ponto.
E O LEGATÁRIO PAGA DÍVIDAS?
Em muitas famílias, o conflito nasce de uma frase simples: “Mas ele deixou a casa pra mim no testamento”. E aí alguém responde: “Deixou, mas a herança está cheia de dívidas”. A resposta já inicia uma confusão e quebradeira em família, naquele domingo que seria divertido, mas o falastrão acabou bagunçando tudo. Um testamento mal feito ou intencionado erroneamente pode gerar muita confusão.
Em regra prática (e é assim que a família entende), o legatário não entra no “rateio geral” das dívidas como quem herdou o conjunto. Ele recebe um bem específico, e o foco dele é aquele legado.
Porém, existe um detalhe que muda tudo: o legado pode ser reduzido.
E pode ser reduzido por dois motivos muito comuns:
Quando as dívidas do espólio, ao serem reconhecidas, implicarem redução dos legados (ou seja, as contas apertaram, e o legado encolhe). O Código de Processo Civil trata isso de forma expressa e reconhece, inclusive, que o legatário tem legitimidade para se manifestar nesse ponto.
Quando o testamento excede a parte disponível, devendo ser reduzido ao limite legal e, se não bastar reduzir quotas, reduzem-se também os legados proporcionalmente.
Além disso, se houver herdeiros necessários, o testamento não pode “invadir” o que a lei reserva; se exceder a parte disponível, as disposições excedentes se reduzem, e se não bastar, os legados também entram na redução proporcional.
Resultado: Ana pode não receber o apartamento como imaginava — ou pode receber com ajustes, conforme o caso. Eis a legislação vigente, que o artigo 3º da supra lei diz que todo não podem dizer que não a conhecem.
CONCLUSÃO
No fim das contas, herança e legado são dois assuntos dentro de um mesmo ramo e falados dentro do mesmo velório: o primeiro é o todo herdado, indivisível por enquanto e amplo; o segundo, objetivo, pontual, divisível e fruto da vontade do falecido.
Se a família entender apenas isto, já terá ganho uma guerra sem precisar travá-la: herança é o conjunto inteiro, com bens e dívidas, que só vira “minha parte” depois da partilha; legado é um bem específico prometido em testamento, mas que não tem imunidade contra dívidas do espólio nem contra os limites da lei.
Antes de distribuir, apura-se; antes de sonhar, paga-se; antes de apontar o dedo, calcula-se.
Por isso, o conselho mais útil é faça testamento bem feito, com consciência dos herdeiros necessários, da parte disponível e das dívidas que podem engolir o entusiasmo, o sonho e, claro, o Corcel 72, cor azul.
[1] “Com a idade, os desejos perdem força; e isso é como escapar de senhores violentos; por isso, ele encontra na velhice mais paz e mais prazer em conversar (328e–329d). A República (Platão)







Em outras palavras, bem é tudo aquilo que pode
integrar um patrimônio e ser objeto de relações jurídicas, abrangendo coisas (corpóreas - tangíveis) e também realidades incorpóreas (direitos e até energias economicamente valoráveis - intangíveis).
